Carta Aberta: A Clínica Racializada
- João Paulo

- 21 de mai.
- 3 min de leitura
Sabe aquela sensação de carregar um peso invisível, como se o mundo ao seu redor fingisse que ele não existe? Para nós, pessoas negras, o racismo muitas vezes se manifesta exatamente assim: como uma dor cotidiana, persistente, que não grita, mas sussurra — e sufoca. Não apenas nos ataques explícitos, mas nos olhares enviesados, nos comentários “inocentes”, nas oportunidades negadas e no esforço dobrado para provar que merecemos estar onde estamos.
Essa vivência afeta profundamente nossa saúde mental. E o espaço terapêutico, que deveria acolher e escutar, tantas vezes falha. Falha quando silencia a dor racial. Quando patologiza a raiva. Quando deslegitima a experiência de quem sofre com o racismo todos os dias. É nesse contexto que surge a clínica racializada: um espaço de escuta radical, onde a nossa história, a nossa cor, a nossa dor e a nossa potência são levadas a sério.
Quando o cuidado começa pelo reconhecimento
Na clínica racializada, a experiência racial não é marginal. Ela é ponto de partida. Aqui, o racismo não é tratado como exagero, vitimismo ou evento isolado. É reconhecido como parte estruturante das nossas experiências — e, portanto, um elemento essencial a ser escutado, elaborado e compreendido no processo terapêutico.
É um espaço onde não é preciso justificar o óbvio. Onde não se exige que a pessoa negra eduque o terapeuta sobre as violências que vive. Onde a escuta não minimiza, mas legitima. Porque a dor racializada é real, e precisa de um espaço legítimo para existir.
Nesse ambiente, podemos nomear aquilo que nos atravessa: o medo de não sermos aceitos, o cansaço de resistir, a raiva que nos disseram para reprimir, a vergonha que não nos pertence. Aos poucos, as palavras voltam a circular. A respiração encontra espaço. O corpo, tensionado pelo medo e pela desconfiança, começa a relaxar. E é aí que o cuidado começa a fazer sentido.
Um reencontro com a potência negra
A clínica racializada também é lugar de reconstrução. De desfazer os nós que o racismo nos ensinou a carregar: a inferioridade, a culpa, o silêncio. Aqui, reaprendemos a olhar para nossa história com dignidade. A compreender que não somos o problema — o problema é o sistema que insiste em nos adoecer.
Na escuta racializada, nossos afetos são legitimados. A raiva é reconhecida como resposta legítima à opressão. A tristeza não é sintoma de fraqueza, mas expressão da dor acumulada de uma vida inteira de negação. O cuidado não exige neutralidade — exige posicionamento.
Mais do que tratar sintomas, a clínica racializada nos ajuda a reconstruir sentido. A fortalecer nossa autoestima. A celebrar nossa ancestralidade. A lembrar que nossa existência, por si só, é um ato de resistência.
Quem escuta com consciência transforma
Quem conduz esse processo precisa mais do que técnica: precisa compromisso ético, escuta sensível e consciência política. O terapeuta racializado, ou racialmente consciente, não trata a raça como detalhe secundário. Reconhece que a saúde mental da população negra está atravessada por séculos de exclusão, dor e luta — e que todo cuidado que ignora isso está fadado a reproduzir o adoecimento.
Essa clínica não nos isola do mundo. Pelo contrário: nos prepara para ele. Nos fortalece para seguir, para resistir, para construir novas formas de existir. Porque quando somos vistos por inteiro — com nossa cor, nossa história, nossas marcas e nossa beleza — a cura se torna possível.
Considerações finais
Cuidar da saúde mental em um espaço que reconhece a vivência racial é um gesto de amor, de cura e de liberdade. É romper com a lógica que nos quer adoecidos e assumir, individual e coletivamente, o direito de viver com dignidade. A clínica racializada é mais que um modelo terapêutico — é um manifesto: nossas vidas importam, nossas dores têm nome, e nosso cuidado precisa ser inteiro, profundo e político.
Referências
Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro.
Gonzalez, L. (1988). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In L. Gonzalez (Org.), Primavera para as rosas negras: Uma antologia do pensamento de Lélia Gonzalez (pp. 29–38). São Paulo: Zahar.
Silva, S. A., & Oliveira, C. A. (2021). Psicologia, racismo e saúde mental: a clínica como espaço de resistência. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 24, 1–14. https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.cpsp.2021.181057
Santos, J. M. (2017). O conceito de escuta racializada: Um lugar possível de enunciação. Revista da ABRAPSO, 18(1), 1–20.

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